domingo, 29 de março de 2015

A Gangue, 2014


Eu sou uma contradição ambulante, no mesmo tempo que sou adorador de música, quase um dependente químico da mesma, eu me emociono com o poder do silêncio. É muito importante falar, e eu adoro, por sinal, porém de nada adianta falar quando não se sabe ouvir e, ainda mais, não adianta buscar um equilíbrio nessa questão, se não foi aprendido a ouvir a si mesmo, o vazio, a paz. Há momentos, sozinhos, que nos deparamos com uma belíssima oportunidade de nos sentir, quem nunca falou consigo mesmo? Eu às vezes me pego discutindo comigo mesmo, literalmente. É válido ressaltar que o silêncio tem um poder catártico. Aproximando nosso interior e concentrando nossas atenções a pessoas que “deveria” ser a mais querida desse mundo: nós mesmos. Aliás, a concentração é tão fraca no quesito realidade quanto um conto de fadas, pois o mundo está uma correria, ninguém tem tempo para contemplar o vazio de não consumir.
O cinema existe, pois o silêncio existiu. O cinema mudo, bem no seu início, foi uma das grandes revoluções do século XIX, transformando a vida do homem que, sem saber ainda, poderia ver o seu reflexo em situações cotidianas e/ou irreais e hilárias, vulgo Charles Chaplin. No mesmo tempo que o cinema mudo representava uma limitação técnica – bem, não havia formas de ter, naquela época, a fala – representou, também, a possibilidades do mundo conhecer a sétima arte. Ora, imagina o trabalhão para legendar todos os filmes ou, pior, dublar, era inteiramente impossível, portanto a narrativa física possibilitou ao espectador do mundo inteiro acompanhar aquelas pessoas de modo que fosse entendida por completo, a história ou piadas eram passadas através da linguagem corporal.
O cinema se torna falado e com pessoas como Woody Allen, por exemplo, se torna tagarela. Eu amo aqueles com muitos diálogos, mas em nome da contradição eu também sou um cara feliz quando me deparo com aquelas obras da Europa que tem como artifício principal o silêncio. Bem, em 2014, as pessoas acostumadas com o padrão “filme pipoca”, com explicações a cada minuto, eis que surge na Ucrânia um filme chamado “A Gangue” que, posso aqui afirmar, revoluciona a linguagem, mesmo quando todos achavam impossível tal fato acontecer.

“A Gangue” ou “Plemya” acompanha um jovem rapaz, mudo, que vai para uma escola de mudos. Ele acaba adentrando no mundo de gangues, cometendo roubos, auxiliando na prostituição de duas garotas etc. Aliás, ele acaba se envolvendo emocionalmente – e fisicamente – com uma delas e então suas ações começam a contrariar os líderes da sua gangue, onde ele havia conquistado seu espaço e, além do mais, sua reputação. Vale lembrar ou alertar que o filme não tem um diálogo falado sequer, a não ser por sinais, ou seja, libras, todos os atores são, de fato, mudos, o espectador acompanha dois universos diferentes: do mundo com o mudo, no dia a dia já causa um estranhamento, pois nem todo mundo conhecem a sua linguagem; E, mais interessante, do mudo com o mundo que evidentemente tem suas diferenças dos demais, ou pelo menos é sujeito a esse sentimento.

Quem me acompanha sabe que aprecio/pesquiso filmes que falam sobre jovens, isso se torna ainda mais atraente quando a figura caricata dessa espécie explosiva é transformada pelo país que vive, então filmes Suecos são diferentes dos Franceses, Espanhóis dos Brasileiros e assim por diante, claro que qualquer tema se enquadra nessa questão, mas minhas pesquisas sobre o jovem, utilizando o cinema como grande impulsionador, me mostram que cada país possui o seu jovem diferente. Isso é muito interessante, pois é o primeiro Ucraniano que assisto. Deu para perceber que a violência é muito utilizada, reflexo das barbaridades que a Ucrânia está passando. Na sinopse acima, eu utilizei o termo “reputação”. Essa palavra é exaltada pelos jovens, que buscam o seu lugar ao sol, uma maneira de se enquadrar em alguns padrões, sejam eles bons ou ruins, nosso protagonista, por exemplo, começa apresentando-se como tímido e meio deslocado, porém ele vai remando com a maré, se misturando as ações outrora impensáveis. Esse submundo, do qual inclui-se a prostituição e, consecutivamente, o aborto, é envolto de muitas facilidades, atraente, eu diria, mas as consequências? 

Esse assunto não é raro no cinema, no próprio Francês “Respire”, há uma relação com a entrega desenfreada, mas o modo que é colocado em cena, se revela como um grande salto, como abordei bastante, o silêncio é uma poderosa ferramenta – seja na nossa vida ou no audiovisual – mas também pode ser uma arma contra. Em mãos erradas, o filme poderia se tornar extremamente cansativo, tanto por ser em linguagens de sinais como por não ter legenda – ou seja, nós não sabemos mesmo o que eles estão dizendo... ops... sim, dizendo – mas o ótimo diretor Miroslav Slaboshpitsky é muito seguro na direção, apresentando opções eficazes quando ao posicionamento de câmera, sempre distante dos personagens, ângulos abertos, com poucos cortes. Se você, meu caro amiguinho, acha que “Birdman” ou “Boyhood” mudaram alguma coisa no cinema, espere até ver “A Gangue” que, além de trabalhar bem com o choque, apresenta um vislumbre visual e direção primorosa.

Falando do Miroslav Slaboshpitsky, um grande artista nascido em 1974, ele tem alguns curtas no currículo, eu tive a oportunidade de assistir um de 2010 chamado “Glukhota” ou “Surdez”, que ele igualmente brinca com essa linguagem. Foi bem recebido no festival de Berlim, por exemplo. Para minha felicidade, tinha assistido há algum tempo e, só depois de ver “A Gangue”, fui saber que era o mesmo diretor, é muito bom quando essas coisas acontecem, sinto-me próximo do trabalho de alguém que admiro e sei que o cara tem muito talento e, claro, muito o que mostrar, só pela ousadia merece todos os méritos. É válido dizer que ele não sabe a linguagem de sinais, então dependeu de um interprete durante todas as filmagens, imagino o trabalho disso!

O filme vai fazendo o espectador se acostumar com a ausência de algo tão comum para nós, quanto à conversa. Ele habitua-nos a uma escola silenciosa, por exemplo, algo que chega a ser um absurdo, e ele habitua-nos tanto, até mesmo com os detalhes, que vamos ficando boquiabertos quando começa a tomar um rumo grotesco, quanto ao choque. Ao estilo Gaspar Noé – para quem conhece seus filmes, irá certamente lembrar dele no final do filme – a dor é sentida de forma tão visceral que, no mesmo tempo que vamos ficando petrificados, vamos nos tornando um pouco mais mudos a cada segundo. Começa a fazer parte de nós a incapacidade de se expressar verbalmente, ou melhor, não queremos isso, basta contemplar.

Há um uso quase que abusivo do azul claro, ou azul bebê, durante muitos momentos do filme, incluindo os mais relevantes, como o famoso corredor, cuja funcionalidade representa quase que a essência do mal, para a gangue de delinquentes, passando para a cena de sexo, entre o protagonista e a menina, inclusive acabou virando o pôster do filme e, por final, o aborto da mesma garota, a parede é azul claro também. A analogia que eu fiz é: Oceano, mar, pureza. Parece algo infantil, algo que me remete a mãe, aliás, cadê a família desses jovens? Cadê a mãe do menino ou menina? Enfim, o fato da parede ser azul, significa que eles estão submersos no oceano das novas experiências e do acomodado. As profundezas do oceano, por sinal, não se propaga som. O útero da mãe tem água, talvez eles estejam no útero da maldade e libertinagem que, como dito, trará consequências. Um verdadeiro ensaio sobre reputação, banhado em um oceano de silêncio.

sábado, 28 de março de 2015

Adeus ( Bé Omid É Didar) , 2011


O cinema Iraniano vem amadurecendo a cada ano, inclusive essa realidade acabou aumentando ainda mais com o Oscar para "A Separação", porém, o país ainda enfrenta grandes dificuldades e, me parece, que os filmes sempre terão como pauta principal buscar uma forma de utilizar personagens como metáforas para as diversas situações que ocorrem e que eu - assim como muitos - não entendo completamente pois não vivo no Irã. 

No mesmo tempo que a arte produzida nesse país um tanto quando "exótico" cresce a cada dia, o poder permanece autoritário e tenta podar seus melhores artistas como, por exemplo, Jafah Panahi, que foi preso por desagradar as autoridades apoiando um candidato oposicionista em 2009. Esse fato desencadeou, inclusive, o belíssimo documentário "Isso Não é um Filme", onde o próprio Panahi se filma preso em seu apartamento e reflete sobre a criação artística, enfim, foi um processo bem turbulento sendo, inclusive, alvo de atenções de grandes nomes do cinema como Steven Spielberg e Juliette Binoche. Bem, ao lado de Jafah Panahi, um outro diretor menos conhecido, porém, de suma importância, chamado Mohammad Rasoulof, também foi preso, mas ao contrário do primeiro, que inicialmente foi proibido de filmar por 20 anos, Rasoulof conseguiu permissão para continuar com o seu projeto "Bé Omid É Didar", que viria a ser lançado em 2011, um ano depois desse episódio catastrófico para o cinema.

Com o contexto citado, posso dizer que "Bé Omid É Didar" ou "Adeus" sustenta sua crítica na figura de um jornalista, cujos textos afetam diretamente o poder e, por esse motivo, se vê preso em uma onda de investigações e opressão. Quem sofre tudo isso é sua mulher, que está grávida, ela anseia poder sair do país mas, enquanto isso, acompanhamos a trajetória de uma mãe desesperada e perdida pois irá trazer a esse mundo sujo uma criança, que não tem culpa de absolutamente nada, ainda mais, essa personagem principal permanece sozinha, o marido se esconde, a mãe que chega para ajudá-la parece que a sufoca, enfim, está solta, presa dentro de uma série de questionamentos.
Essa mulher, interpretada brilhantemente pela linda Leyla Zareh, parece desprendida daquela imagem submissa, afinal, é jovem e advogada, porém tem sua licença cassada, ou seja, a fuga se mostra inteiramente presente em cada quadro, em duas cenas a moça está no terraço do seu apartamento e, subitamente ao fundo passa um avião, como se viesse ao encontro dela. Outra metáfora em meio a um silêncio perturbador seria quando ela, delicadamente, coloca uma tartaruguinha em uma vasilha, joga umas sementes, mas o filhote de tartaruga quer sair daquele lugar, ela sai do quadro e a câmera permanece estática no bichinho, quando a moça retorna, ela cerca a vasilha com jornais, ou seja, palavra, ou seja, censura. O filme tem uma linguagem extremamente complicado, é facilmente confundido com monótono, mas há um senso crítico poderoso, em meio a tanta solidão, representado, também, pela fotografia magnífica, uma dose certa de distância, um azulado remetendo a melancolia, enfim, um vislumbre visual.

O fato dela estar grávida deixa tudo ainda mais interessante, principalmente quando percebemos que esse fato se torna uma maldição ao longo, um fardo, em qualquer outro lugar seria altamente normal, mas não ali, não pressionada, não naquela situação, ter um filho passa a ser uma previsão catastrófica, repetir o erro de estar vivo em um lugar que não se merece a vida, a personagem está no seu limite de tolerância, começa, então, a ser indiferente, seja aos homens que vão investigar sua casa a procura do marido ou a própria mãe, tudo não passa de algo natural, menos o fato de que é mãe, isso nunca motiva um sorriso dela, muito menos um choro, está, simplesmente, acontecendo, e está buscando a melhor forma de lidar com isso, sozinha, fugir não é uma opção pois tenta incansavelmente ir para outro lugar, a fuga não seria um aborto, ou a criança vir ao mundo normal, tudo está anormal, o fato da sua filha ter síndrome de down, descobrimos isso ao longo, é só uma extensão daquela situação, a nossa protagonista só precisa de um lugar para viver em paz.

- o que anda fazendo?
- Não posso mais aguentar. Esse país não é lugar para se ficar.
- Mas a que preço?
- o preço da liberdade. Preço da vida.
- vou dar a luz a ela e renascerei
- o bebê é inocente... é um pecado mantê-la em tempos como esse


terça-feira, 17 de março de 2015

Uma Passagem para Mario, 2014


Submerso. Começo o texto com esse significado. "Uma Passagem para Mario" nos provoca com o imerso, de um refletir sobre o amor. Amizade que existe, se desfaz, se aprende, se refaz. Luto. Uma passagem passageira de solidão, para e com o Mario, se torna, tão rápido, sem. Pra quê planos? Me pergunto. Se não o registro oportuno de um sempre amigo sorridente. O sempre perdeu a validade. 

Esse lindo documentário de 2014, fala sobre amizade. Ao contrário. Pois, diferentemente do normal, a amizade não se constrói, se perde. Mario do título é um ser humano encantador - ficará claro ao longo - gosta de mergulhos, sempre sorridente, enfim, descobrimos logo no início que ele está fazendo um tratamento para o câncer. Já parece muito debilitado, nunca caindo no coitadismo, pois sua personalidade extrai uma felicidade encantadora. Ele tem um amigo chamado Eric Laurence que, por sua vez, é o diretor do documentário. Eric incentiva o seu amigo a fazer mini-registros da sua família, amigos, rotina, para levar em uma viagem - que ambos estão programando - ao deserto de Atacama e ao salar de Uyuni. Essa viagem também será registrada. 


O filme começa com uma filmagem do Mario em um mergulho. Estampando um sorriso, como de costume, somos apresentado ao personagem que, mesmo nas cenas que não aparece, está presente. Ele se preocupa em alertar o médico sobre o desejo de viajar da Bolívia para o Chile, tomando as devidas precauções antes da aventura com o amigo Eric. 

Eric faz, então, o que seria o seu último registro audiovisual. Deixando a família e, claro, o amigo nessa pobre existência passageira. É quando o Eric Laurence parte em rumo a Bolívia, destinado a atravessar até o Chile, fazendo o mesmo trajeto que planejava com o amigo, inclusive é mostrado o roteiro, em dado momento. Se a ideia era fazer um documentário sobre a fome de viver do Mario, o filme passa a ser um registro de luto. Eric Laurence caminha sozinho. Filmando a estrada, os detalhes, como se o espectador fosse seu amigo que acabara de falecer, nós(Mario) temos a oportunidade de acompanhar seus passos, nos sentindo próximo não só do lugar, como do sentimento da perda. Ao longo ele entrevista alguns desconhecidos, como músicos de rua e trabalhadores, com perguntas sempre direcionadas a morte e amizade, em uma das entrevistas, com três músicos, eles se emocionam em falar que, apesar de se conhecerem há três semanas, eles sentem, de alguma maneira, que eles estão construindo uma família. Um ótimo oposto, entre o fim e o começo, estável e flexível. 

Poucas vezes no cinema a viagem foi tratada de modo tão visceral quanto nesse, ela se sustenta com a ideia de um objetivo, mas se desenvolve em base ao respeito pela memória. Eric perde e vai. Recuperando um isolamento, processando o quanto a vida é frágil. Engraçado, todos falam isso "a vida passa rápido" mas será que temos, de fato, consciência disso? Hoje mesmo ouvi uma sábia frase "a gente percebe que está ficando velho, quando pessoas da nossa idade começam a morrer de formas naturais". É inerente ao ser se achar um pouco imortal, não fazer o que se quer é uma prova disso. Se eu não o fizer, quando vou fazer? Uma hora ou outra, percebemos a nossa finitude, pode ser da forma mais simples possível, mas sempre acontece. Então bate o desespero, esse espetáculo acaba. Infelizmente. Eu não vou falar de novo que a arte imortaliza e, portanto, Mario ainda vive. Mas certamente tenho que ressaltar que, apesar do filme ser imensamente triste, ainda vejo otimismo, em ver um personagem tão interessado na vida, tão espontâneo, mesmo tão perto da morte. 


Mario, mesmo em tratamento, começa um namoro, aliás, resulta em uma cena hilária, onde ele narra suas preocupações para com a relação sexual. Mesmo com toda uma vida, cercada de pessoas que o amam, ele mantinha com o amigo a ideia de criar, produzir arte, afim de se dividir, viajar, iluminar, conhecer. Outro lado positivo do documentário é mesclar a viagem solitária de Eric com o motivo da mesma, com os fragmentos da vida de Mario. 

Chegando no tão almejado deserto, Eric projeta nas rochas os vídeos do amigo que assistia no notebook. A iluminação, as cores, o vídeo, a rocha, a verdade, tudo é tão crível e profundo, resultando em uma das cenas mais lindas que eu já vi, reafirmando não só a amizade que existe ali, como a missão cumprida. Uma missão para ele mesmo, se desamarrar dessa linda lembrança, afim de seguir em frente, mesmo que um pedaço grande dele tenha partido. Ao final, fica a sensação de um milagre, audiovisualizando a natureza selvagem, ressaltando a importância que tem para o olhar, olhar o identificável. A verdade pode sim se eternizar, não só no coração de um indivíduo, de muitos, como eu que, enquanto subia os créditos finais, chorava por ter perdido um querido amigo. 

sexta-feira, 13 de março de 2015

Tempo de Embebedar Cavalos, 2000


Já falei quantas vezes que o cinema que mais gosto do mundo é o Iraniano? Enfim, afirmo novamente e você, meu caro, que ainda não assistiu nada desse país, tome vergonha na cara e corre, mas corre, aproveita que está fácil, tem muita coisa no Youtube, inclusive esse que comento hoje, certamente será uma das maiores experiências cinematográficas que você terá na vida.

"Tempo de Embebedar Cavalos", lançado em 2000, segue a linha de vários iranianos, onde a criança será reflexo das situações horrorosas onde todos, sem exceção, são usados. As crianças são os veículos ideais pois, como é possível imaginar, representa a inocência, o novo, diante a situações de mudanças. Dessa vez, nossos corações segue a história de cinco irmãos órfãos, destaque para Ayoub e  Ameneh que, além de trabalhar para pagar a dívida de uma mula, ainda precisam se preocupar em juntar dinheiro para a operação do irmão mais novo, Madi, que sofre uma grave doença.

Madi é deficiente, evidentemente se torna um problema para uma família sem condições, mesmo assim, o amor que recebe, cuidado e carinho, é de chorar os 80 minutos de filme. Lembrando que o cinema Iraniano tem crianças que não são atores, na sua maioria, então a verdade das expressões provocam questionamentos, não entendo como é possível. Mais da metade dos mirins de Hollywood não chega aos pés do que essas crianças fazem. A irmã Ameneh demonstra tanto carinho, todo momento beija o irmãozinho, protege o irmão mais velho, que assumiu o posto de líder depois da morte do pai, em dado momento ela olha para o alto e pede que Deus ajude o irmão com problemas de saúde. A criança olha para o céu também, junto com ela, um silêncio, uma dor aterrorizante. Tão cruel, um ensaio sobre o real. A dor é tão real, inclusive, que as cenas em que o pequeno toma injeção e chora, quando está congelando no frio ou sendo arrastado por mulas, enquanto fica preso em uma "sacola", são uma mescla de realidade e, também, tortura. O quão ético é registrar o sofrimento com o sofrimento? Enfim, é um bom exercício esses filmes, pois eles tem como proposta primordial a exibição do que acontece. Ninguém pode julgar acontecimentos. É preciso estar despido para, só então, conseguir embarcar na nova cultura.

Por sinal, esse filme se passa em um lugar diferente do Irã, localizando-se na divisa com o Iraque, o que terá uma importância na trama, visto que Ayoub faz parte dos contrabandistas, que se submetem a vários perigos de vida. A paisagem está congelada, o branco da neve, o frio, apoia a ideia de sofrimento. O trabalho pesado, o pesado sendo carregado nas costas infantis, são reflexões que terminam nas cenas finais, onde as mulas são pisoteadas, é tão doloroso vê-las carregando aqueles pneus enormes, caindo na neve, apanhando, que entramos em estado de choque, aquelas mulas são as crianças e vice-versa. O desespero é um só. Não existe idade para esse tipo de coisa. 

Primeiro filme do diretor Bahman Ghobadi, que vem fazendo grande sucesso em festivais de cinema. Além de ser ótimo, parece ser um ótimo e sensível ser humano. É preciso muita passionalidade para realizar obras incríveis como ele. 

quinta-feira, 5 de março de 2015

Noite Vazia, 1964


O Cronologia do Acaso surge como extensão do meu fascínio por pesquisar cinema, creio que, como eu, muitas pessoas estão cansadas de assistir o mesmo e, eventualmente, acabam se deparando com algo totalmente novo e inesperado, talvez um filme da Bósnia, ou China, enfim, a arte audiovisual é incrível, uma jornada rápida e interminável através de países, estilos e culturas, já comentei muitos filmes, muitos deles de diversos países, então hoje voltarei meus olhos - espero que motive vocês também - para o nosso país. 

Quem já ouviu dizer que a Xuxa começou sua carreira fazendo um filme que transava com um garoto? Pois bem, todo mundo fala isso, mas poucos assistiram, de fato. Estou ressaltando isso por dois motivos, o primeiro é que quando se fala do cinema nacional, o povo começa a fazer caretas, dizer que só tem putaria ou, pior, que só existe a globo filmes, ai o ser humano começa a se passar por pseudo e fala que detesta o nosso cinema porque não gosta dessa tal produtora, que mais parece uma maldição para mim. Como disse acima, o argumento "só tem putaria" também é escrota, fala da pornochanchada como se fosse uma imundice, o que pesquisando só um pouquinho, veremos que é completamente ao contrário, claro que há coisas ridículas mas, muitas realizações, são o puro exemplo de ousadia em momentos de repreensão. Aliás, muitas histórias ultrapassam o limite do sexo e se utilizam disso para fazer críticas, enfim, realizar um bom filme. Espero em breve escrever um pouco mais sobre isso, pois estou fugindo bastante do tema. 
Citei o tal filme da Xuxa, pois ele é dirigido por WALTER HUGO KHOURI, diretor também da obra-prima "Noite Vazia".

Ouvi de um amigo tempos atrás que WALTER HUGO KHOURI era o Ingmar Bergman brasileiro, até então não conhecia o seu trabalho e achei estranho a comparação. O que raios esse cara tinha feito para ser comparado ao Bergman? Só então assisti alguns de seus filmes, incluindo esse que vou comentar, e percebi que, realmente, há razões para a comparação, mas não precisa necessariamente delas para se certificar que Walter é um diretor excelente, um dos maiores nomes do nosso cinema.
Suas obras tem a incomunicabilidade como tema central, uma pitada de existencialismo, sexualidade apurada, enfim, só dar uma olhada na grade de atores - principalmente atrizes - que trabalharam com ele, sem dúvida era um realizador que era sinônimo de entrega.

Noite Vazia, 1964,  é um clássico incontestável do cinema brasileiro, para mim um dos melhores filmes, senão o melhor. Isso se deve, entre muitas coisas, pela reunião de talestos que acontece. Só pode ser um milagre audiovisual. Vou tentar resumir esse elenco, no mesmo tempo tentar não perder a respiração porque, sério, é motivo de alegria!
Tem Gabriele Tinti, galã italiano, excelente ator, fez vários "Emmanuelles" da vida depois desse filme, mas já trabalhou em muita coisa boa, inclusive participação em um filme do Mario bava, um dos maiores diretores do cinema de terror Italiano. Ele foi casado com a querida Norma Bengell, uma atriz que dedicou sua vida ao cinema, fez a primeira cena de nu frontal do nosso cinema no filme "Os cafajestes", depois virou diretora, terminou sua vida, infelizmente, no esquecimento. Considerada por muitos, e por mim, como a Brigitte Bardot brasileira. Ao lado dela temos também outra lenda, a atriz Odete Lara - faleceu há pouco tempo. Por fim, talvez o menos badalado, o ator Mário Benvenutti, que fez pérolas da pornochanchada como "Macho e Fêmea", de 74, dirigido pelo Ody Fraga.
Minha primeira dica é essa, pesquisem esse submundo do cinema autoral, principalmente esse diretor e as atrizes, que respiraram cinema até a morte. Em um país dominado pelas novelas, elas se recusaram até o último momento, levando o Brasil para frente, a importância que eles tiveram é enorme, vale a pena pesquisar sobre o trabalho dessa trinca maravilhosa.

Noite Vazia, 1964, conta a história de dois amigos Nelson e Luiz, ambos tem o costume de sair a noite e pagar algumas prostitutas, afim de buscar pelo prazer e preencher seus vazios. Luiz é bastante rico e tem uma família, mesmo assim influência o amigo para adentrar cada vez mais nessa vida boêmia. Acompanhamos uma noite desses dois, onde esperam por mulheres maravilhosas, por acaso encontram Mara e Regina, vão para um quarto e nada sai como o esperado. Apesar da tentativa de divertimento, ambos se sentem extremamente perdidos, o sexo não é o suficiente. Pouco a pouco, através de nuances, eles vão revelando suas angústias, assim como seus sentimentos mais profundos.

É impossível analisar esse filme da forma normal, é repleto de significados. Desde o sexo, passando pela prostituição, enfim, o diretor desconstrói a imagem do homem devorador, essa máscara vai caindo ao ponto de estabelecer as duas mulheres como verdadeiras sábias. Elas lidam com as fraquezas de seus respectivos parceiros para bem próprio, assim como, aos poucos, aquela relação de interesses dá algum espaço para compreensão, principalmente da Regina com o Nelson. É evidente que se constrói um sentimento dela para com o rapaz, se identificando, talvez, com aquela tristeza de seus olhos claros.

Voltamos ao ano do filme, 1964, o país passava por plenas mudanças, quando aparece uma pérola ousando dessa forma, falando sobre tabus, enfim, é extremamente poderoso. Mostra uma vida em São Paulo como poucas vezes visto. No fim, ele fala sobre problemas atemporais, ligados a existência do homem, como o uso e desapego. Temos um homem tratando mulheres como números, tem que pagar para se sentir dominador, enquanto na sua realidade é um escravo da rotina. A sua diversão é se imaginar diferente, ter poder sobre o corpo, fica claro isso com a frase "com dinheiro a gente pode fingir que se diverte". 

Sob influências do Antonioni, desenvolvendo personagens complexos, envoltos de uma beleza visual, além de atuações incríveis, principalmente por parte da Odete Lara e Norma Bengell, "Noite Vazia" faz jus ao título, acompanhamos essa noite paralisados, diante a tamanha frieza, relatando uma tentativa de fuga, a qual nunca parece ser o suficiente. Tenho certeza que se esse filme fosse Europeu, ele seria creditado como um dos melhores, como não é, acaba sendo mais uma obra de arte a se descobrir. 

"- Não é por você, eu não me sinto bem em lugar algum, com ninguém. - É só isso que você tem pra me dizer? - Eu estou tentando ser sincero. cansei de fingir pra todo mundo."
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