segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Documentário: Homem/Mulher: Duas Histórias


Eu sempre gostei de documentários. Não aqueles produzidos na tv sobre o antigo egito. Esses não me atraem. Estou falando de documentários que capturam a realidade, registram o vento e extrai do ser o desabafo. Todos nós precisamos falar. Claro que isso ocorre em eventuais encontros com vizinhos, amigos etc. Mas quando e com quem podemos, de fato, nos abrir e contar nossos segredos/pensamentos mais ocultos?

É incrível a nossa limitação, e aqui me refiro a limitação da palavra. Vivemos em uma sociedade que priva a nossa opinião, tudo se tornou preconceituoso e os "tabus" são temas para intelectuais. Vários intelectuais falam sobre a violência contra a mulher, mas e a mulher? Quando ela fala? O ato de proibí-la de dizer o que pensa não seria, por si só, uma violência?

Não sei se eu me faço entender, mas as pessoas se preocupam muito em moldar as situações, conforme os interesses pessoais. E tudo se torna proibido ou um monstro de sete cabeças. Isso gera o medo, desinteresse e, se não bastasse, o próprio tabu.

O documentário chega para tentar eliminar a barreira do desconhecido. Muitos desconhecem o seu próprio direito de falar, de compartilhar. O sistema cria pessoas invisíveis e o documentário, quando bem realizado, dá a elas esperança. Isso está em tudo, na prostituição, na educação, nas ruas...

Muitos julgam a prostituição, mas quem se procura em ouvir o que uma prostituta tem para falar? Como no documentário "Whores' Glory" ou "Nascidos em Bordéis". E quantos entendedores falam sobre educação e, ironicamente, não deixam nem sequer uma criança dar a sua opinião. Como seria bom se todos tivessem voz. Como seria bom se nos colocássemos, também, a disposição para ouvir. Como é difícil ouvir, em tempos de fones de ouvido. 

Ångrarna


É incrível imaginar a quantidade de histórias que temos ao nosso redor. Há pessoas para todos os lados que vivem o mesmo dia que você, mas não a mesma vida. Inúmeros amores, traições, sexos, prazeres, beijos... tudo acontece nesse exato instante. Quantos primeiros beijos acontecem todos os dias, em? Histórias diferentes, levemente parecidas mas, acima de tudo, únicas.

Ora, podemos ser confortados apenas por saber que os problemas de outra pessoa são maiores do que os nossos. O legal é perceber essa conexão e o quanto ela é fragilizada. Sempre usei uma frase que vi no seriado "Heroes", dita pelo Nathan Petrelli: "todos precisamos ter os nossos segredos". Todos tem segredos, aqueles bem guardados. E quando ele envolve os sentimentos de outra pessoa? Ainda é um segredo digno de ser guardado ou, nesse caso, é invasão?

Esse é só o começo desse documentário sueco genial que eu assisti na Tv Escola. Dirigido pelo Marcus Lindeen, que estrutura uma ideia simplesmente sensacional - inclusive eu tirei um projeto de documentário da gaveta depois que assisti -, digo o formato mesmo. Duas pessoas trocam experiências um de frente para o outro. Um é Orlando Fagin e o outro é Mikael Johansson. Ambos são homens, trocaram de sexo e, depois de ter passado por alguns problemas, resolvem voltar a ser homens. Ou melhor, ter um pênis, como o próprio Mikael afirma, em dado momento.


Uma das coisas mais lindas que eu já vi na minha vida. O doc vai navegar por entre as indecisões e arrependimentos dos seus protagonistas, seres humanos. E digo seres humanos pois eles não são homem nem mulher. Nenhum momento fica claro isso, fazendo com que o espectador sinta exatamente o que está sendo narrado por, principalmente, Orlando Fagin. Ele, que fora casado por 11 anos, conseguiu enganar o marido todo esse tempo, levantava as 4 da manhã para fazer a barba e, assim, levou a vida, atuando. Um homem que deixa de ser para se tornar uma mulher, receber carinho e ser amada. Porém, banhado pela mentira. Com medo de não ser descoberto constantemente, ele se perde em meio a ele, até que a verdade é descoberta.

A reflexão que fica é: Se eu troquei de sexo deveria, então, me relacionar com mulheres? Ser lésbica? Porque não posso casar-me com um homem? Só que estamos falando de uma época diferente, pensamentos diferentes e, claro, da mentira. 

Orlando Fagin não teve voz para dizer a verdade. Não permitiram isso, resultando em uma tristeza profunda, tanto para ele quanto para o seu companheiro. É então que ele decide voltar a ser homem. Mikael Johansson, então, se confunde com essa história toda. Esclarece que Orlando não se parece com um homem, é então que ele ouve:

"Eu não sei quem eu sou"

O meu coração saltou pela boca com tamanha verdade daquelas palavras. A busca de um ser, não por um lugar - quanto a isso estou bem familiarizado - mas por uma identidade. Me faz pensar o quanto as pessoas enxergam a outra como posse - minha mulher, meu marido, MEU - e, sendo assim, nos tornamos objetos. Não mais homem ou mulher. Os 3 mil anos citados no documentário é hoje. Só há produtos de interesses. Somos inclassificáveis.

Não somos mulheres, nem homens, somos ambos.

Já que citei os "3 mil anos", é mencionado que daqui há algum tempo todos seremos um. Só haverá um gênero. A natureza encontrará um meio. Agora eu penso, a natureza ou o sentimento? Para mim aquelas duas pessoas representam os tais "3 mil anos". Elas/eles pularam a estrada da vida, se desprenderam da obrigação de se definir. São duas espécies perdidas, no meio a tantas que são personificação do óbvio.


Um pênis, definitivamente, não te faz ninguém. Tudo diz respeito ao seu sentimento e, claro, olhar. Aliás, o olhar de Orlando no final do doc, algo como se quisesse dizer "eu sei no que isso vai dar" ou "fique tranquilo", beira o inacreditável. Como o registro é poderoso. Histórias que seriam perdidas, se tornam eternas. Esse é um dos documentários que eu mais me identifiquei na vida. Me sinto mulher, me sinto homem, me sinto de passagem, me sinto sem nome nem lugar. Me sinto casado e só. Me sinto navegando em extremos. O segredo e a violação. A voz e o escutar. O sentimento e a ação. O olhar e... o olhar. Me sinto com vontade de me esconder um pouco, como o Mikael Johansson. Mas tenho vontade de me exibir como o Orlando Fagin. Eles são extremos, não se pode negar.

que preto, que branco, que índio o quê? 
que branco, que índio, que preto o quê? 
que índio, que preto, que branco o quê?

aqui somos mestiços mulatos 
cafuzos pardos mamelucos sararás
 crilouros guaranisseis e judárabes

somos o que somos 
inclassificáveis

- Inclassificáveis, Arnaldo Antunes

Obs: Para quem quiser assistir o documentário, ele está passando no canal Tv Escola. Aqui tem as próximas exibições. Se você não tem o canal na tv, eu acredito que tem como assistir online no site deles. Além disso, você pode baixar nesse link.

4 comentários:

  1. Boa noite. Encontrei este blog no google enquanto procurava o filme. Como estava atrás somente pelo download, passei direto e não li o excelente texto. Baixei, assisti ao filme e veio o baque. Voltei para o google, desesperado, dessa vez procurando o blog. Eu precisava ler algum comentário, alguma coisa, qualquer coisa, sobre o que tinha acabado de assistir.

    Primeiro; gostaria de dizer que sou engajado na diversidade sexual. É um tema que me fascina e pelo qual tenho um interesse imenso, em especial, pela abordagem da identidade de gênero. Estou sempre em busca de obras que tratam a respeito disso, livros ou filmes, enfim, gosto de aprender mais sobre papeis de gênero, transgeneridade, transfeminismo e etc. E foi assim que fiquei sabendo do filme, e agora, do blog.

    Segundo; o documentário é impressionante! No primeiro momento, por puro preconceito, achei que fosse algum tipo de desserviço com a comunidade trans e suas lutas, em apresentar duas pessoas que fizeram a transição (e tiverem oportunidade para isso, com todas as dificuldades, eu sei) e depois recuaram, retornando ao papel “confortável” de “ser” homem. Me questionei: por que não dar voz a pessoa trans verdadeira? Por que a identidade de gênero precisa ser apresentada sempre como algo desequilibrada e conflituosa? Porém, mais pra metade do filme, já tinha entendido meu erro. Todas as vozes ignoradas precisam ser registradas. Que oportunidade eu teria em conhecer dois seres humanos incríveis, com a experiência que tiveram, e que agora estão mostrando como as identidades são algo tão complexo, e que eu preciso compreender. Sim, eles são pessoas trans verdadeiras, e não, eles simplesmente não “recuaram” ao que eram antes. Isso seria impossível. E é lógico que o gênero, atualmente, está em conflito, afinal, cada vez mais barreiras estão sendo quebradas. O feminismo cresceu, o transfeminismo vem conquistando seu espaço, homens cis estão chorando, colocando salto e questionando seu papel. A comunidade LGBT finalmente dá mais visibilidade para as lésbicas, para os bissexuais e para as trans. Todos esses setores estão demandando espaço, direitos, e todos devem ser ouvidos.

    Orlando não sabe quem é. Ninguém sabe, na verdade. Mas ele teve coragem e se permitiu descobrir o que poderia ser. Mikael, por sua vez, tornou-se uma incógnita, não sabia o que queria ser, mas queria ser algo. Arrependeu-se. Queremos um corpo para depositar todas as projeções do que representamos. Se nasci homem biológico e cisgênero, devo fazer de tudo para manter minha imagem ao que é socialmente tido como masculino. Não podem haver distorções, não posso cruzar a linha daquilo que não se trata do meu gênero, que foi construído e que é mantido sistematicamente. Os dois cruzaram por motivos diferentes e então resolveram mudar de novo. Enquanto um sente indiferença pelo que se tornou ou pelo que é, o outro quer ser exatamente aquilo que era, completamente. Para ele, um pênis seria como a marca registrada do que é ser homem. Sabemos que isso é um sintoma compulsório do machismo e que a pressão não é nada fácil. Torço por Mikael. Sou muito grato aos dois (e ao texto neste blog) pela reflexão.

    Terminando; queria novamente agradecer pelo texto e pela referência ao download. Muito obrigado. Saiba que ganhou um novo leitor. Abraços.

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    1. Me emocionei com o seu comentário. Obrigado mesmo por compartilhar. Sinta-se a vontade nesse pequeno espaço. Meu facebook é: emerson teixeira lima. Valeu mesmo lucas!

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  2. Olá ! Devo dizer que fiquei muito feliz em encontrar este seu blog, enquanto procurava por informações a respeito desse documentário. E parabenizo-o muito por isto ! Seu blog é ótimo e útil ! Porém, também eu, assim como o Emerson Teixeira, não consegui assistir pelo site da TV Escola. Ademais, estou procurando "desesperadamente" pelo blues da trilha sonora, cujo título aparece também no final, nos créditos. Não consegui "ler", pois passa muito rápido e a imagem me pareceu bem ruim ! Se acaso você souber que música é aquela, peço a grande gentileza de me informar ! Muito obrigado, e parabéns pelo seu texto. É magnífico !

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    1. Cyso, infelizmente eu desconheço a música que toca, mas posso procurar e te aviso se encontrar alguma coisa. Fico feliz que você tenha gostado do blog e te convido para nos seguir no nosso novo endereço ( www.cronologiadoacaso.com.br ) sempre com críticas e textos sobre o cinema, principalmente independente, vida e muito mais!
      Abraço!

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